Emenda Constitucional 95 fere o núcleo do direito à saúde
Foram impetradas ações diretas de inconstitucionalidade contra a EC 95, de 2016, que congelou os gastos da União com despesas primárias por 20 anos, corrigidos pela inflação medida pelo IPCA, por ferir o núcleo essencial do direito que é a garantia de recursos orçamentários para a sua sustentabilidade. Ouvida a Procuradoria-Geral da República (ADI 5.658), a mesma se manifestou contra a ação por não ver violação de direitos fundamentais, como os da saúde e educação, tendo em vista que estão mantidos seus percentuais mínimos, com correção por 20 anos.
Os argumentos jurídicos expressos na manifestação da PGE não se fizeram acompanhar de mínima análise de ordem econômico-financeira que comprove tal afirmação. Preliminarmente, sem nenhum esforço prévio, pode-se afirmar que o sistema de saúde brasileiro não funciona a contento pela insuficiência de recursos, tanto que são quase dois milhões de ações judiciais (2018), visando à garantia desse direito[1]. Se o SUS não tem atuação adequada e os percentuais mínimos da saúde foram alterados negativamente, tem-se, de modo insofismável, que haverá perdas financeiras para custear a saúde pública brasileira até 2036, com danos irreparáveis à saúde das pessoas, o que, indubitavelmente, fere o núcleo essencial do direito.
Não é de hoje, mas, sim, de 30 anos que se reverbera sobre a insuficiência dos recursos para o financiamento da saúde. Mesmo que haja desperdícios na gestão, se corrigidos, como devem ser, não serão suficientes para cobrir a crônica e longa falta de recursos financeiros. Por isso, discutir financiamento de direitos fundamentais que têm custos só com argumentos de ordem jurídica, desamparado de fundamentos de ordem econômico-financeira, certamente as suas conclusões estarão contaminadas pela incompletude.
Diferentes cálculos econômicos (considerando diferentes metodologias de projeção) comprovam que serão retirados, no mínimo, R$ 200 bilhões (a preços de 2017), ao longo de 20 anos, de um sistema de saúde comprovadamente subfinanciado e insuficiente há três décadas. Não há matemática nem lógica que dê conta de desmentir a afirmação de que haverá redução de serviços: “congelado” o piso federal no valor de 15% da receita corrente líquida de 2017, atualizado anualmente tão somente pela variação do IPCA/IBGE, a despesa per capita em saúde terá queda em razão da mudança do cálculo do seu piso; a população continuará a crescer e a envelhecer, as tecnologias se renovarão, idem a farmacologia e os materiais e insumos médicos, e certamente haverá disputa entre quem será atendido ou não, como já tem sido frequente nos dias de hoje, onde, diuturnamente, os profissionais de saúde lidam com a questão das escolhas trágicas.
Serviço de saúde em sua dimensão prestacional não pode ser objeto de análise quanto aos seus custos, somente à luz de argumentos jurídicos. É consagrado no cenário internacional os valores financeiros mínimos para a garantia de serviços de saúde. No campo da economia da saúde, há argumentos que sobejamente demonstram a violação do preceito constitucional, não passível de retrocesso, pelo recuo de seu financiamento aos níveis de 2017. Direitos que crescem em relação ao progressivo envelhecimento da população e por outros motivos intrínsecos à natureza do serviço não podem ser congelados sem prejudicar o seu núcleo essencial. Dizer que a garantia do direito não será maculada porque os percentuais mínimos estão mantidos é uma visão míope por não levar em conta os fatores econômico-financeiros, social, demográfico, epidemiológico e outros.
A realidade é que a saúde brasileira é subfinanciada. Gasta-se R$ 3,60 per capita/dia com a saúde do cidadão nas três esferas de governo, que envolve desde a vigilância sanitária de produtos, alimentos, estabelecimentos, cargas perigosas, registro de medicamentos, alvarás de funcionamento de estabelecimentos comerciais (atividade protetiva e regulatória) a um transplante renal (atividade assistencial-prestacional).
Esse valor implica um gasto público consolidado (União, estados e municípios) em saúde de 4% do PIB (em 2017), quase a metade do gasto do Reino Unido (7,9% em 2015, segundo a Organização Mundial de Saúde). Considerando que o gasto consolidado em saúde pública no Brasil foi de R$ 265 bilhões em 2017, essa diferença, em termos internacionais, corresponde a uma insuficiência superior a R$ 210 bilhões/ano, sendo que essa defasagem aumentará ainda mais pelos efeitos negativos da nova regra “congelada” do piso federal do SUS, que deve também ser analisada em conjunto com o teto geral para a disponibilidade financeira das despesas primárias (afinal, não basta empenhar a despesa para que as necessidades de saúde da população sejam atendidas, é preciso liquidar as despesas — fase da despesa pública que atesta que os bens e serviços comprados foram entregues e prestados nos termos contratados — para depois pagar).
Justificar a constitucionalidade da EC 95 sem fazer uso de teorias e projeção de cálculo da economia da saúde é análise rasteira sobre o que a EC projeta para a saúde nos próximos 20 anos, afetando gravemente a dignidade das pessoas que ficarão sem atendimento em suas necessidades (tratamento de câncer, vacina, cirurgia, consulta, exames ambulatoriais).
A definição de valores percentuais de receitas visa permitir variações anuaisconforme o crescimento econômico do país. Esse é o espírito da norma que foi a mesma da EC 29, de 2000, que trazia conceito idêntico de oscilação do piso da saúde pela variação nominal do PIB, anualmente. Tornar fixo o valor percentual por 20 anos significa alterar a mens legis que é a da variação do piso em relação ao crescimento da receita; ao se criar uma base fixa para a saúde por duas décadas, a intenção do legislador constitucional foi violada por transformar um percentual sobre receitas variáveis conforme a sua arrecadação, em valor fixo por 20 anos.
O piso mínimo em saúde pela EC 86 é de 15% das receitas correntes líquidas da União, cambiante conforme o crescimento do país. A mens legis é a de manter o piso da saúde móvel em relação ao desenvolvimento econômico da nação. Desse modo, a EC 95 imobilizou o piso da saúde por 20 anos, corrigindo um valor fixo, base 2017, pela inflação de cada ano, que não acresce recursos tampouco os repõe por não ser coerente com a realidade dos custos da saúde no Brasil. O crescimento do país deixou de ser parâmetro para o piso da saúde, e a correção da inflação jamais contemplará o crescimento populacional, os índices de longevidade e sua epidemiologia, os custos dos insumos, matérias, medicamentos, novas (e velhas) tecnologias de saúde, dentre outras.
Isso nos permite afirmar de modo fundamentado que houve alteração na metodologia de cálculo para os próximos 20 anos, uma vez que não mais haverá a incidência do percentual de 15% sobre a arrecadação, passando a vigorar o valor do ano anterior acrescido da correção do IPCA, mudando-se, assim a regra da EC 86. A cada ano isso se repetirá, havendo sempre um piso em decorrência da correção inflacionaria sobre uma base inicial, e não em razão do crescimento da RCL. A EC 95, alterou, sem dizer expressamente, o percentual mínimo da saúde,que matematicamente deixou de ser de 15% sobre o valor RCL para ser o valor da receita corrente líquida de 2017, acrescida da variação do IPCA anual, incorporada no piso a cada ano. Um percentual fixo sobre uma receita móvel deixa de existir nos próximos 20 anos, transformado, matematicamente, num valor fixo, base 2017, sem alteração em razão do crescimento da arrecadação fiscal das necessidades públicas.
Como a correção da inflação não tem o condão de acrescer recursos, tão pouco corrigir seu custo econômico em acordo à realidade do mercado da saúde, as perdas serão cumulativas pelas causas acima apontadas, somadas às necessidades da saúde não atendidas, ainda, pelo SUS, que sempre se mostrou insuficiente às necessidades das pessoas.
No ano de 2018, o valor percentual sobre a RCL foi de 13,9%, diminuindo em R$ 4,2 bilhões (cálculo matemático) seu valor real em relação aos 15% da RCL. Somando a perda de 2018 com a de 2019, são R$ 9,7 bilhões retirados da saúde em dois aos.
2018 | R$ 112.361 (EC 95) contra R$ 120.802 (15% RCL) |
2019 | R$ 117.293 (EC 95) contra R$ 127.005 (15% RCL) |
Isso demonstra de modo cabal ser a EC 95, em relação ao piso da saúde, inconstitucional por promover retrocesso na garantia de direito fundamental, tendo alterado o piso mínimo da saúde, que a cada ano será inferior a 15% da RCL, derrotando o argumento da PGR de que não houve alteração no percentual fixado pela EC 86 e que por isso não há perda no piso mínimo da saúde. A EC 95 alterou a mens legis da EC 86, ao custo do desfinanciamento da saúde por duas gerações, ou seja, em larga proporção!
A PGR, ao dizer ainda que a “manutenção de parâmetro para a fixação dos gastos futuros em relação ao total de despesas efetivadas no exercício de 2017, sob correção do IPCA, é suficiente para manter os mesmos níveis de saúde”, e que os “pisos dos gastos com saúde e educação estão mantidos” (piso-teto, diga-se), não atentou minimamente para um simples cálculo matemático, como o acima, que comprova a mudança de parâmetro com perdas de recursos de modo grave.
Além do mais, entender que caberá ao Executivo, respeitado o teto dos gastos públicos, alocar as receitas aos serviços públicos de saúde e de educação, demonstra total desconhecimento da realidade econômico-orçamentária e fiscal da saúde e educação brasileiras. No caso da gestão orçamentária e financeira, em 2017, os valores dos empenhos a pagar em saúde foram recordes (cresceram 81% em relação a 2016), enquanto que os valores pagos totais (referentes aos empenhos de 2017 e aos restos a pagar) cresceram apenas 0,1% (ou seja, bem abaixo da inflação, o que representou uma queda real da disponibilidade financeira para pagamentos). Até as transferências financeiras do Fundo Nacional de Saúde para os fundos estaduais e municipais de saúde ficaram prejudicadas — os empenhos a pagar no final de 2017 (sem terem sido liquidados) foram 165% maiores que no final de 2016.
Argumentar a PGR que a prestação de serviços públicos que contribuem para a promoção desses direitos pode sofrer retração em períodos de escassez é ignorar a escassez real do SUS em relação às necessidades das pessoas por 20 anos e tergiversar sobre o papel do Estado e de as suas escolhas alocativas, como o não congelamento dos gastos com juros e encargos da dívida pública que consomem a metade do orçamento público, ou seja, metade das receitas pagas pela população que não vê o seu retorno aplicado em serviços de primeira necessidade, vinculado à dignidade e que manutenção da vida.
“A atuação do Judiciário deve ater-se, no caso, a verificar se o núcleo dos direitos sociais em questão foi desrespeitado, de modo a não invadir as escolhas políticas realizadas democraticamente pelo poder constituinte reformador”, ressaltou a PGR em seu parecer. Ora, o núcleo do direito já está sendo violado na medida em que sobre o crescimento da receita corrente líquida em 2018 não pode incidir 15% pelo fato de ter sido criado um piso fixo que somente se altera pela correção do IPCA, levando a mudança do parâmetro de cômputo do piso da saúde.
A projeção da perda, que será crescente (se crescente for o crescimento da economia), importará em mais ou menos R$ 200 bilhões em 20 anos. Isso sem contar a projeção das perdas do valor do pré-sal destinado à saúde como um valor adicional ao piso, um plus, um acréscimo, e que a EC 95 alterou de modo permanente, e não por apenas 20 anos, o que também se constitui em retrocesso na garantia do financiamento da saúde, reconhecido pelo ministro Lewandowski em sua medida cautelar na ADI 5.595, com riscos concretos de danos à saúde das pessoas em todas as suas dimensões, a protetiva, a prestacional e a regulatória.
Com a EC 95, a saúde deixará de ser subfinanciada para ser desfinanciada, ou seja, perderá recursos anualmente para enfrentar as demandas da sociedade. Como se financiará a incorporação de novos medicamentos e de novas tecnologias que surgem de modo veloz, pois a biotecnologia e a tecnologia da informação não param de evoluir? Elas serão congeladas? E as necessárias e que ainda nem mesmo foram incorporadas?
O sistema de saúde não está consolidado do ponto de vista de sua sustentabilidade financeira, pois ainda faltam medicamentos, atendimentos, consultas, exames na qualidade e suficiência necessárias para a população brasileira. Os tratamentos de câncer são demorados, impondo ao doente prazos de espera incompatíveis com as suas necessidades, violando-se a lei que exige tratamento a partir de 60 dias da confirmação do diagnóstico. Congela-se um sistema insuficiente, que ainda não cumpriu o mandamento constitucional de garantia do direito, dando origem a um sistema que poderá ser inoperante.
A tabela[2] abaixo ilustra a queda do piso federal do SUS em relação à receita corrente líquida, consequência direta da nova regra estabelecida pela EC 95/2016[3].
Nenhum centavo de crescimento da receita da União será destinado para o financiamento do SUS e das demais políticas públicas como a educação, transporte, habitação, saneamento, assistência social etc. nesse período de 20 anos de vigência da EC 95/2016, porque será alocado para o pagamento de juros e amortização da dívida pública.
A EC 95, ao congelar o piso da saúde por 20 anos, estará diminuindo gradualmente o percentual que deve incidir sobre as receitas correntes líquidas pelo fato de a mesma não mais corresponder à arrecadação anual das receitas. Nesse sentido, o piso da saúde foi alterado pela EC 95, ainda que sem alteração nominal, na medida em que não irá acompanhar o crescimento anual da receita líquida conforme determina a EC 86, diferentemente do que afirma a decisão da PGR em relação à ADI 5.658.
Por fim, congelar recursos é o mesmo que congelar serviços: todos acham que o SUS pode congelar seus serviços nos níveis de 2017, sem nenhum acréscimo real sem gravíssimos danos ao sistema e à saúde das pessoas? Ou teremos que esperar pelo aumento de doenças e mortes para então comprovar que a EC 95 é inconstitucional e faz mal à saúde?
*Francisco Funcia é economista e mestre em Economia Política pela PUC-SP.
*Lenir Santos é advogada, especialista em Direito Sanitário pela USP, doutora em Saúde Pública pela Unicamp e coordenadora dos cursos de especialização do Idisa — Instituto de Direito Sanitário Aplicado.