Covid-19, o SUS e o teto de gastos
Por Sônia Fleury*
Publicado pelo Cebes.
O Vírus
A emergência e disseminação global do coronavírus Covid-19 tem trazido à tona medos e inseguranças em todas as sociedades e enormes especulações nas áreas financeira e econômica. Com a maior economia do mundo afetada em sua capacidade produtiva, tanto a demanda de commodities quanto a exportação de insumos para indústrias eletroeletrônicas e farmacêuticas já estão sendo comprometidas. Inúmeros outros impactos na indústria do turismo e na produção de feiras e eventos internacionais, no comércio exterior, já começam a ser sentidos. Além disso, o capital financeiro especulativo busca reduzir riscos, transladando-se para portos vistos como mais seguros. Ou seja, a circulação de pessoas, de mercadorias e de capitais está sendo afetada por uma epidemia que, em uma economia globalizada, pode se transformar rapidamente em uma pandemia.
Além desses impactos mais comentados pela mídia, alguns outros efeitos importantes e mais complexos têm sido revelados, por exemplo:
- a importância de existir um órgão como a Organização Mundial de Saúde, parte das Nações Unidas, para estabelecer parâmetros e protocolos internacionais que permitem ações coordenadas e conjuntas no enfrentamento da situação emergencial na saúde global;
- a necessidade de transparência por parte dos governos para que os dados e alertas médicos sejam difundidos e permitam a tomada das decisões mais corretas;
- a existência de Estados capazes de regular, fiscalizar, fazer a vigilância necessária e prover a atenção à saúde a todos seus cidadãos, além de mobilizar esforços e coordenar as ações dos serviços privados de saúde.
- a imprescindível competência científica e capacidade técnica, viabilizando a participação nacional na produção de conhecimentos e de instrumentos eficazes no tratamento e prevenção da enfermidade.
Os “Parasitas”
“A pandemic is more than a disease. It tests a society’s health systems, its government and politicians, and its economy” The Economist, 29/02/2020
É interessante que a revista mais importante de economia dentro da corrente hegemônica do neoliberalismo tenha chamado atenção para que não apenas a economia será afetada, mas também será um teste para governos e políticos e para o sistema de saúde de cada sociedade.
Em outros termos, se a ameaça do vírus é global, a resposta variará na dependência das capacidades nacionais dos sistemas de saúde instalados e na vontade política dos governantes de prover os insumos necessários para uma ação afetiva.
No dia 02 de março o FMI e o Banco Mundial emitiram declaração conjunta na qual mostram-se alertas para apoiar financeiramente os países no enfrentamento da pandemia, e disseram estar concentradas especialmente nos países pobres onde os sistemas de saúde são mais fracos.
Enfim, parecer já estar claro que sistemas públicos universais, com elevada capilaridade no acesso e distribuição de sua rede, e com possibilidade de ações normatizadas e coordenadas de vigilância, prevenção, análise laboratorial e tratamento, são aqueles que poderão melhor enfrentar os riscos e desafios colocados pela disseminação do vírus. Em outras palavras, “ainda bem que temos o SUS”! foi a declaração acertada e responsável do Ministro da Saúde, segundo a revista Isto É de 28/02/2020.
Reportagem recente da Folha de São Paulo (28/02/2020) pôs à mostra a incapacidade de uma sociedade como a americana enfrentar a situação de pandemia, mesmo sendo a mais rica do mundo e com maior gasto per capita em saúde. Isto decorre do fato de que sua política de saúde estrutura-se em base em base a planos de saúde privados com cobertura limitada de procedimentos, o que, além de deixar milhões de pessoas sem acesso, tem se transformado em uma fonte de falências pessoais para aqueles cujos tratamentos ultrapassam o valor da cobertura do plano. Não por acaso o tema da universalização do sistema de saúde tem sido a grande polêmica nos debates eleitorais naquele país.
Já no Brasil, mesmo com a existência do SUS, nos últimos anos o gasto público em saúde não tem sido capaz de manter a rede de serviços e muito menos em permitir investimentos para melhoria da sua qualidade. Na lista da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne os seis países mais ricos do mundo além de outros 38 membros da organização, o Brasil está no 37º lugar em gasto per capita em saúde. Além disso, enfrentamos o paradoxo de sermos o único país com um sistema universal de saúde no qual o gasto público per capita é superado pelo gasto privado, demonstrando claramente o desfinanciamento do SUS.
Mesmo assim, os profissionais de saúde têm sido incansáveis no enfrentamento das precárias condições de trabalho com baixa valorização salarial, buscando prestar atendimento em situações de aumento da violência urbana, aumento de doenças crônicas com o envelhecimento da população, incidência de doenças transmissíveis como a dengue, zika e chicungunha, febre amarela decorrentes da falta de saneamento básico, dentre outras razões. Mas, tuberculose, sarampo e outras enfermidades para as quais há tratamento estão em alta.
O Brasil é reconhecido mundialmente por seu programa de saúde em HIV/AIDS, pelo programa de aleitamento materno, e também pelo fato de seus cientistas participarem de redes internacionais de sequenciamento de genomas, com produção avançada de conhecimentos na área biológica.
Os funcionários públicos da área da saúde, tratados como “parasitas” pelo Ministro Paulo Guedes, estão se preparando para enfrentar o vírus. Deles e do sistema público de saúde dependerá o sucesso no enfrentamento da crise sanitária que vem sendo anunciada com a disseminação do covid-19. Se isso acontecer, não vai dar para os mais ricos dizerem que não usam o SUS, nem fugir para Miami. Ao contrário, seria a hora de reconhecer a importância da política de saúde e do sistema universal para toda a sociedade brasileira, juntando forças de toda a sociedade para conseguir superar os principais gargalos do SUS na produção mais efetiva de medidas de saúde pública. A primeira medida, com certeza deve ser a revogação da Emenda Constitucional 95, que definiu um teto de gastos para um período de 20 anos, ignorando questões básicas como o envelhecimento da população ou que uma epidemia poderia atingir o país, por exemplo.
Os vampiros
Desde que a Emenda Constitucional (EC) 95 foi aprovada, em dezembro de 2016, o orçamento para a Saúde tem diminuído cada vez mais. Somente em 2019, a perda de investimentos na área representou R$ 20 bilhões, o que significa, na prática, a desvinculação do gasto mínimo de 15% da receita da União com a Saúde, afirma o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, CONASS.
A queda livre do orçamento da saúde tem sido sentida pela população com a desmontagem de programas como o Mais Médicos, Farmácia Popular, distribuição de medicamentos para pacientes crônicos, dentre outros.
Diante da iminência de uma crise sanitária, os governadores se reuniram com o ministro da saúde (06/02/2018) solicitando um repasse extraordinário da União para vigilância e cuidado dos pacientes, na base de R$1,00 para despesas com equipamentos e R2,00 para gastos de custeio como compra de medicamentos. Até o momento não houve decisão acerca desta solicitação, certamente vista pela área econômica como um meio de favorecer a “cultura de parasitas”.
Ao contrário, o que se propõe é sugar mais ainda os recursos das políticas sociais, desconstitucionalizando as vinculações orçamentárias e adotando medidas que ferem os princípios constitucionais na garantia de direitos sociais. Isto é que se vê na nova proposta de pacto federativo, com a unificação das alíquotas destinadas à saúde e educação, ambas áreas subfinanciadas, que com a unificação deverão disputar os recursos entre si, abrindo as portas para a privatização de ambas.
A política vampiresca da área econômica extrai recursos da área social para produzir superávits primários, mantendo a irrigação do lucro da banca nacional e internacional em níveis estratosféricos, promovendo a concentração ao invés da distribuição, e, esterilizando e matando a indústria e o mercado de trabalho, formalizando a informalidade verde amarela.
Diante da estimativa da secretaria do Tesouro Nacional de que o envelhecimento da população exigirá gasto adicional de R$50 bilhões em saúde até 2027, cálculo mais que previsível, mas nem sequer foi aventado quando da promulgação da EC 95, o que resta fazer?
Ao invés de revogar a EC 95 e promover uma reforma tributária democrática e redistributiva, capaz de financiar os direitos sociais dos cidadãos constitucionalmente estatuídos, a cultura vampiresca neoliberal propõe distribuir vouchers para que os “consumidores” possam buscar atender suas demandas escolhendo as ofertas no mercado. Na suposição falsa que há o que se escolher em termos de serviços nas periferias das cidades em termos de serviços de saúde e educação de qualidade. Afinal, os vampiros se mostram os verdadeiros parasitas, desviando os recursos públicos para favorecer um mercado privado desregulado e de baixa qualidade! E, sem que a população possa participar das decisões públicas!
Mas, a crise provocada pela emergência de uma pandemia põe a nu o que todos sabemos: não há direitos de cidadania sem um Estado garantidor, não há direito à saúde sem um sistema público universal e integral, com participação popular. Simples assim! Como está na Constituição Federal de 1988.
*Sônia Fleury é Doutora em Ciência Política, ex-presidente do CEBES e pesquisadora associada do CEE-Fiocruz.