Corporações: já vivemos uma distopia
Por Jeremy Lent , do site Outras Palavras*
Alguns dos principais pensadores de nossos tempos vêm soltando uma série de alertas sobre a ameaça de a inteligência artificial dominar os humanos. Stephen Hawking profetizou que isso poderia ser “o pior acontecimento na história de nossa civilização”, a menos que encontremos uma forma de controlar o seu desenvolvimento. O bilionário Elon Musk fundou uma companhia para tentar manter os humanos um passo à frente no que ele considera uma ameaça existencial da Inteligência Artificial (IA).
O cenário que os aterroriza é que, apesar das boas intenções, terminemos criando uma força mais poderosa do que toda a humanidade, com um sistema de valores que não necessariamente incorpora o bem-estar social dos humanos. Quando essa força atingir uma massa crítica, ela poderá dominar o mundo, controlar as atividades humanas e, essencialmente, sugar toda a vida do planeta, enquanto se otimiza para seus próprios fins. O notável futurista Nick Bostrom nos dá o exemplo de uma superinteligência projetada para fabricar clipes de papel que poderia transformar toda a Terra em uma grande instalação industrial produtora de clipes.
Esses futuristas estão certos ao falarem de suas preocupações, mas se esquecem do fato de que os humanos já criaram uma força que está no caminho de devorar a humanidade e o planeta juntos, exatamente da forma que eles temem. É a Corporação.
Governado por corporações
Quando as corporações foram inicialmente criadas, no século XVII, seus fundadores – assim como os engenheiros de software modernos – acreditavam que agiam com boas intenções. Os primeiros estatutos corporativos foram feitos apenas para limitar a responsabilidade dos investidores à quantia de seu investimento, portanto, encorajando-os a financiar expedições arriscadas para a Índia e para o Sudeste da Ásia. Porém, logo surgiu uma consequência imprevista, conhecida pelo seu perigo moral: com vantagens maiores do que os prejuízos, desatou-se um comportamento imprudente, que desencadeou uma série de grandes fraudes e a falência do mercado. Com isso, as corporações foram banidas temporariamente da Inglaterra, em 1720.
Thomas Jefferson e outros líderes dos Estados Unidos, precavidos pela experiência inglesa, desconfiavam profundamente das corporações e davam a elas contratos limitados com poderes muito restritos. No entanto, no turbilhão da Guerra Civil americana, industriais se aproveitaram da desordem para alavancar e generalizar a corrupção política e, assim, expandir sua influência. “Este não é mais um governo das pessoas, feito por pessoas e para as pessoas. É um governo de corporações, feito por e para corporações”, lamentou Rutherford Hayes, que virou presidente em 1877.
As corporações se aproveitaram completamente de sua nova autoridade e passaram a influenciar legislações estatais para que emitissem contratos perpétuos que lhes dessem o direito de fazer qualquer coisa que não fosse explicitamente proibida pelas leis. O ponto de inflexão em seu trajeto para a dominação ocorreu em 1886, quando a Corte Suprema denominou corporações como “pessoas” com direito à proteção da 14ª Emenda, que havia sido aprovada para dar direitos iguais aos antigos escravos, libertos após a Guerra Civil. Desde então, a dominação das corporações só tem sido otimizada pela lei, culminando no conhecido caso do Citizen United, em 2010, que liberou as restrições de gastos políticos das corporações em eleições.
Sociopatas com alcance global
Corporações, bem como uma Inteligência Artificial potencialmente desertora, não possuem interesses intrínsecos de bem-estar humano e social. São construções legais: entidades abstratas, projetadas, acima de tudo, com o objetivo final de maximizar os retornos financeiros para seus investidores. Se corporações fossem, de fato, pessoas reais, seriam sociopatas, completamente esvaziados de empatia, que é um elemento crucial do comportamento humano normal. Todavia, diferentemente dos humanos, corporações são teoricamente imortais, não podem ir para a cadeia e, no caso das maiores multinacionais, não podem ser restringidas pela lei de nenhum país de forma individual.
Com a incalculável vantagem de seus poderes sobre-humanos, corporações dominaram o mundo, literalmente. Cresceram de forma tão acentuada que um impressionante número de 69 das 100 maiores economias do mundo não são Estados-nações, mas entidades corporativas.
Corporações têm conseguido usar seus poderes transnacionais para ditar suas próprias condições a qualquer país do mundo. Como resultado de décadas de globalização, corporações podem explorar a livre movimentação de capitais para construir fábricas em países com sindicatos mais fracos ou distribuir plantas poluentes em países com leis ambientais inconsistentes, baseando suas decisões somente na maximização dos retornos para seus acionistas. Os governos disputam entre si para tornar seus países o mais atraentes possíveis para o investimento corporativo.
Um impressionante número de 69 das 100 maiores economias do mundo não são Estados-nações, mas entidades corporativas
As corporações manejam seus vastos poderes para controlar a mente dos consumidores, seduzindo-os para um estado de consumo sem fim. No começo do século XX, Edward Bernays, o grande cérebro do empoderamento corporativo, apresentou seu audacioso plano de jogo como “a manipulação consciente e inteligente dos hábitos e opiniões das massas, de forma organizada”. Declarou, ameaçador, que “aqueles que manipulam este mecanismo invisível da sociedade constituem um governo invisível, que é o verdadeiro poder dominante deste país”. As tenebrosas palavras de Wayne Chilicki, diretor executivo da General Mills, demonstram como a visão de Bernays tem se perpetuado: “Quando se trata de segmentar consumidores infantis, nós da General Mills… acreditamos em capturá-los bem cedo e tê-los conosco para a vida toda”.
O resultado dessa apropriação da humanidade pelas corporações é um mundo fora de controle, onde a natureza é impiedosamente saqueada para extrair as matérias-primas necessárias ao aumento dos retornos dos acionistas num vórtex de crescimento econômico infinito, sem se preocupar com a qualidade da vida humana e sem consideração pelo bem-estar das futuras gerações.
Apropriação corporativa da governança global
Em vez de serem julgados pela sua destruição voraz, aqueles que dedicam suas vidas aos importantes senhores das corporações são recompensados com riqueza e elevados a cargos com maior poder e prestígio. ExxonMobil, por exemplo, foi denunciada por ter mentido descaradamente sobre as mudanças climáticas, sabendo há décadas das suas consequências e, ainda assim, ter ocultado informações — condenando, deste modo, as gerações presentes e futuras à catástrofe. Longe de ir preso, Rex Tillerson (que foi o diretor executivo da ExxonMobil durante grande parte desse período), é hoje o secretário de Estado dos EUA e coordena as relações globais do país mais poderoso do mundo.
De fato, o atual gabinete dos Estados Unidos representa a maior dominação até então vista de corporações no governo norte-americano, com cerca de 70% dos altos cargos preenchidos por executivos corporativos. Nas palavras de Robert Weissman, presidente da Public Citizen (organização liberal progressista de advocacia de direitos do consumidor, fundada em Washington), “no governo Trump, lobistas da indústria automobilística definem a política de transporte, a Boeing tem uma posição elevada no Ministério de Defesa, Wall Street controla as políticas financeiras e as agências regulatórias e advogados de defesa corporativa ocupam os cargos-chave no Ministério de Justiça”. Corporações estão entrando em acordos internacionais, com o objetivo de alcançarem seus interesses de forma mais eficaz. No Fórum Econômico Mundial de Davos, em 2015, uma nova Global Redesign Initiative [Iniciativa de Reestruturação Global, na tradução], estabeleceu uma agenda para que as corporações multinacionais se envolvessem diretamente na governança mundial. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, apresentados com muito orgulho como uma proposta para reduzir a pobreza, em 2015, adotaram essa abordagem convidando corporações a se sentarem em sua mesa para discutir os impactos das políticas da ONU, pedindo mais globalização. Companhias de combustíveis fósseis têm se infiltrado nas conferências anuais das Nações Unidas sobre mudanças climáticas para assegurar-se de que não sejam prejudicados por algumas ações, mesmo com o planeta enfrentando as ameaças da catástrofe climática.
Em alguns países como a Colômbia, os refrigerantes são mais baratos do que a água
O fato de as multinacionais terem assumido a administração mundial fez com que o bem-estar social fosse minado em todas partes, na busca do lucro. Sem remorso algum, a Nestlé compra de comunidades rurais o domínio das reservas de água subterrânea para vendê-la engarrafada, deixando para essas comunidades a conta da limpeza ambiental, e o resultado é que, em alguns países como a Colômbia, os refrigerantes são mais baratos do que a água. Como resultado dos produtos químicos vendidos por companhias globais de agronegócio, como a Cargill e a Monsanto, a ONU estima que a camada superior do solo só possa aguentar mais 60 anos de colheitas. Nestes casos, assim como em muitos outros, tanto os humanos como a terra são mera ração para o insaciável apetite de uma inteligência desumana e amoral, fora de controle.
Há uma saída
A posse da humanidade pelas corporações é tão abrangente que fica difícil visualizar qualquer outro sistema global possível. Porém, existem alternativas. Ao redor do mundo, cooperativas administradas por trabalhadores mostram-se tão eficientes quanto corporações — ou até mais — sem almejar, em primeiro lugar, a riqueza dos acionistas. A Cooperativa Mondragon, na Espanha, tem receitas que superam os 12 bilhões de euros, demonstrando que este tipo de organização pode dar muito certo.
Também há mudanças estruturais que podem ser feitas pelas corporações para realinhar seus sistemas de valores ao bem-estar humano. Contratos corporativos podem ser reformados e otimizados, para terem uma linha de fundo tripla, com resultados sociais, ambientais e financeiros — os chamados “três P”, de people (gente), planet (planeta) e profit (lucro). Uma certificação “benéfica” ou B-Corp, que mantém companhias dentro dos padrões de performance social e ambiental, está sendo cada vez mais adotada e, hoje, já é tida entre mais de 2 mil corporações em torno de 50 países.
Por fim, se queremos impedir que essa força tome o completo controle da humanidade, essas abordagens alternativas precisam ser sistematizadas para nossa governança nacional e internacional. Imagine um mundo em que contratos corporativos só pudessem ser reconhecidos se adotasse um “fundo de linha triplo” e onde processos judiciais ameaçassem os acionistas cada vez que uma companhia quebrasse uma de suas regras sociais ou ambientais. Até que isso aconteça, pode ser que o “pior acontecimento na história de nossa civilização” não seja o futuro desenvolvimento da Inteligência Artificial moderna, e sim a decisão de um grupo de políticos do século XVII, que desatou o poder da Corporação sobre uma humanidade desavisada.
Jeremy Lent é autor de The Patterning Instinct: A Cultural History of Humanity’s Search for Meaning [O instinto de padronização: uma história cultural da busca da humanidade por significados, tradução nossa], que investiga como diferentes culturas criaram um sentido para o universo e como seus valores subjacentes mudaram o curso da história. É fundador do Instituto Liology, que se dedica a fomentar uma visão de mundo mais sustentável. Para mais informações, acesse www.jeremylent.com.
* Artigo publicado em 13/6/2019, no site Outras Palavras. Tradução de Simone Paz.