Complexo da Saúde, soberania e autossuficiência em debate na Alerj

Complexo da Saúde, soberania e autossuficiência em debate na Alerj

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O Complexo Econômico-Industrial da Saúde e seu papel na construção de um país soberano e independente foi tema de audiência pública realizada pela Comissão de Economia e Comércio da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, em 4/5/2023, com a presença do ex-ministro da Saúde e pesquisador do CEE-Fiocruz, José Gomes Temporão. A iniciativa foi do economista Mauro Osório, diretor da Assessoria Fiscal da Alerj, responsável pela elaboração da a Nota Técnica do Complexo Econômico-Industrial da Saúde (CEIS), divulgada no fim de 2022.

Participaram da audiência pública parlamentares, como as deputadas Célia Jordão (PL), Dani Balbi (PCdoB), Marta Rocha (PDT), Luiz Paulo (PSD), Flavio Serafini (Psol), Anderson Moraes (PL) e Tande Vieira (Pros), presidente da Comissão de Saúde da Alerj, e o secretário de Estado de Planejamento e Gestão, Nelson Rocha.

“Hoje, observamos a presença de pessoas da área da Saúde na Economia, porque a saúde tem a ver com isso. Como podemos atender os objetivos do desenvolvimento sustentável, entre eles, o bem-estar social, e, ao mesmo tempo, promover o desenvolvimento econômico?”, destacou o secretário, lembrando que no Rio de Janeiro, o setor Saúde representa 24% do total arrecadado do ISS. “Um quarto da arrecadação! Isso mostra de que mercado estamos falando”.

Em sua exposição, Temporão destacou que a discussão sobre o CEIS envolve as relações entre soberania, dependência e autossuficiência no campo da Saúde, “uma discussão sobre distintos modelos e conceitos de desenvolvimento e das relações com a saúde nesse processo “, conforme apontou. O ex-ministro fez um resgate dos principais e importantes esforços, ainda que fragmentados, empreendidos ao longo das décadas na busca de livrar o país da dependência externa. “Estamos podendo conversar, hoje, sobre o conceito de Complexo da Saúde, que ganhou o mundo, porque, ao longo das décadas, muita coisa aconteceu e foi se somando. A própria estruturação do Butantan, de Bio-Manguinhos”, recordou, referindo-se a dois laboratórios públicos brasileiros.

Temporão citou também, entre outras iniciativas, a criação da Central de Medicamentos (Ceme), durante a ditadura militar, em 1971, que buscou fortalecer a produção de princípios ativos no país. “Nos anos 80, o Brasil produzia cerca de metade dos insumos para produção de medicamentos. Hoje, produzimos 5%”, contabilizou, lembrando, ainda, da criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em 1974, que resultou em aumento da demanda por soros e vacinas e permitiu o fortalecimento de laboratórios públicos, hoje dos maiores produtores de vacinas; a política de genéricos na gestão do ministro da Saúde José Serra, nos anos 2000, “fundamental para ampliação da produção e do acesso da população”; a criação da Anvisa, “uma das agências reguladoras mais respeitadas do mundo”; o papel do BNDES, na conformação de uma nova política industrial, já no primeiro governo Lula; e a política de comércio exterior que passa a incluir a área de fármacos e medicamentos.

“Temos ao longo do tempo um somatório de iniciativas, fragmentadas, mas cumulativas, que, de modo heterogêneo e desarticulado tentaram, ao sabor das distintas conjunturas, progressistas, desenvolvimentistas, tratar da dependência tecnológica estrutural da saúde brasileira”, observou o ex-ministro e pesquisador. Essa discussão, prosseguiu, que sempre esteve restrita a especialistas, ganha a sociedade a partir de março de 2020, quando a “gravidade de nossa dependência” fica exposta com a pandemia de Covid-19. “No contexto da pandemia, o Brasil ficou em extrema dificuldade, no acesso a itens essenciais, como respiradores, insumos, equipamentos de proteção individual, testes, entre outros”.

Conforme afirmou Temporão, “não é possível imaginar o pleno desenvolvimento daquilo que está no artigo 196 da Constituição – a saúde como direito de todos e dever do Estado – sem que a sustentabilidade do acesso às tecnologias para diagnóstico, tratamento, prevenção e promoção sejam dominadas no país”.

Temporão alertou para o “crescimento brutal” das importações, gerando um déficit que, em 2020 ficou em torno de 20 bilhões de dólares, grande parte no setor farmoquímico e farmacêutico. E acrescentou a esse déficit da balança setorial comercial o déficit de conhecimento, a dependência tecnológica, científica. “Em 2017, dez países concentraram 88% das patentes depositadas na quele ano. Estados Unidos, China Japão, Coreia, Alemanha, Suíça, França, Reino Unido, Países Baixos e Israel reuniram quase 90% das patentes depositadas”, contabilizou. “Vivemos, nos últimos anos, uma fragilização profunda da ciência brasileira, só agora retomada”.

Ele resgatou, nesse sentido, um “ponto de inflexão” observado no segundo mandato do presidente Lula, em que era ministro da Saúde, em que foi possível possível “sintetizar uma compreensão de desenvolvimento estratégico”, com o conceito de Complexo Econômico-Industrial da Saúde. “A saúde como fator central do modelo de desenvolvimento e, por que não, como parte da solução da crise econômica”.

A saúde está na fronteira do conhecimento, ao lado da indústria bélica, tratando de inteligência artificial, nanotecnologia, química fina, microeletrônica, novos materiais (José Gomes Temporão)

Com essa política, na nova conjuntura que se inicia nos anos 2000 – e que ganha força em 2007 –, analisa Temporão, o conjunto de esforços segmentados ganha “dimensão estruturante e densidade política”. Tem início uma ação política abrangente, a política de saúde como um dos eixos estratégicos para o fortalecimento do CEIS, sob a liderança do Ministério da Saúde. “Uma oportunidade de colocar em prática uma política pública voltada para o desenvolvimento, a redução da dependência, a internalização da produção e o desenvolvimento da inovação”, ressaltou.

Temporão chamou atenção para o aspecto dual da saúde, como política social, voltada à melhoria da qualidade de vida, ao bem-estar das populações, e em sua dimensão econômica singular. “Estamos falando em algo como 10% do PIB, 12 milhões de empregos diretos e indiretos, 30% do esforço nacional em pesquisa e inovação. A saúde está na fronteira do conhecimento, ao lado da indústria bélica, tratando de inteligência artificial, nanotecnologia, química fina, microeletrônica, novos materiais”.

Ele pontuou que o Brasil tem a maior base produtiva da América Latina, um sistema universal de saúde, uma rede de hospitais públicos e privados que desenvolvem pesquisa de ponta, estudos clínicos da alta qualidade e uma estrutura reguladora bem-organizada em base nacional, como a Anvisa. “Ou seja, temos todas as condições para olharmos para a saúde com esse olhar singular. Não como uma área crítica que a população vê de forma negativa do ponto de vista do acesso e os governos veem como gasto”, considerou. “Fico feliz por perceber que o que em 2007 era puxado pela saúde, hoje é compreendido por vários outros ministérios, várias outras dimensões da política, pelo Parlamento. A preocupação que surge com força durante a pandemia sai dos seus limites originais, e o conceito de Complexo da Saúde se coloca de maneira mais disseminada”.

O ex-ministro lembrou a criação, em 2008, do Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS), relançado em abril de 2023 como GECEIS (acrescentando-se um E, de Econômico à sigla), não apenas sob a liderança do Ministério da Saúde e da ministra Nísia Trindade, mas reunindo outros ministérios e contando com a coordenação adjunta do Ministério da Indústria, Comércio e Serviços, tendo à frente o vice-presidente Geraldo Alckmin.

No que diz respeito à conformação de uma agenda para este momento de retomada da política iniciada em 2007 e interrompida em 2016, Temporão propôs uma visão que priorize o aumento da capacidade produtiva endógena, com utilização do poder de compra do Estado. “Em termos nacionais, 30%, 40% do mercado farmacêutico são compras públicas; mais da metade do mercado de testes diagnósticos é de compras públicas; metade do mercado de equipamentos de diagnóstico-terapia é compra pública; 95% do mercado de vacinas são compras públicas”, contabilizou, defendendo a criação de um marco regulatório federal para impulsionar o Complexo da Saúde.

A importância das parcerias entre laboratórios públicos e privados e o fortalecimento do BNDES e da Finep como órgãos copartícipes dessa visão de saúde e desenvolvimento também foram destacados pelo pesquisador. “Temos que ter uma estratégia nacional de Estado na construção de uma base produtiva voltada à redução da vulnerabilidade estrutural e tecnológica do SUS, centrada em tecnologias estratégicas”. Tal momento requer, em sua avaliação, “um esforço do encontro das políticas de saúde, industrial, de inovação, de ciência e tecnologia, em uma perspectiva desenvolvimentista, ampliando e garantindo o acesso, no contexto do fortalecimento da saúde universal”. Essas ações coordenadas beneficiarão, pontuou, “o sistema de saúde como um todo, não apenas o setor privado, como o setor público”.

Temporão chamou a atenção também para o grande potencial do Brasil nesse campo e para a conformação de um consenso sobre a necessidade de uma base produtiva e tecnológica forte. Nesse contexto, destacou aos parlamentares e gestores presentes o potencial do Rio de Janeiro. Contudo, ponderou, para que o estado aproveite a oportunidade desse momento precioso de o tema entrar no processo real de planejamento, será necessário criar institucionalidade para o diálogo entre as várias instâncias de poder e atores envolvidos.

“O Rio de Janeiro tem as três autoridades sanitárias que nunca conseguem conversar. Na minha época foi assim, fizemos vários esforços para tentar superar isso, mas esse retrato continua, há uma rede federal fragilizada que não dialoga com a estadual e essa, por sua vez, não dialoga com a municipal. É a esfinge do Rio de Janeiro a ser decifrada”.

No caso do desenvolvimento tecnológico, da produção e da inovação, ele lembra que o estado “tem a Fiocruz, as melhores universidades e produtores, mas isso nunca foi tratado de maneira efetivamente integrada e articulada para além do discurso político”.

O ex-ministro e pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos da Fiocruz ressaltou a importância da presença da Fiocruz no estado e disse que é preciso haver por parte do governo local uma atuação mais articulada e integrada com o governo federal. Ele lembrou, ainda, que o Rio de Janeiro detém a maior rede pública de hospitais do país. “O Rio de Janeiro não poderia ser um centro de estudos clínicos?”, indagou.

Dentro do “mundo de possibilidades a serem exploradas no Rio de Janeiro, Temporão citou também as parcerias com o setor privado e chamou atenção para importância do relatório elaborado pela Assembleia Legislativa sobre o tema do CEIS, que buscou contribuir para a diversificação da matriz produtiva fluminense, e o trabalho de planejamento do desenvolvimento do Estado do Rio, “que, pela primeira vez, incorpora essa visão e esse conceito no seu processo”. 

No final da audiência pública, os deputados decidiram pela criação de uma frente parlamentar mista sobre o Complexo Econômico-Industrial da Saúde.

 

(atualizado em 5/5/2023)

Audiência pública discutiu o papel do Complexo Econômico-Industrial da Saúde na construção de um país soberano (Imagem: Reprodução)