Cannabis: faltam evidências científicas para proibir e criminalizar, não para produzir
Não há evidências médico-cientificas para a criminalização e a proibição seletiva de drogas, em especial, da maconha. Por outro lado, pesquisas apontam para a recomendação do uso médico da cannabis sativa, no tratamento de diversas doenças, observa o médico e professor João Menezes, do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em entrevista ao blog do CEE-Fiocruz. João Menezes comentou a proposta da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de liberar o plantio de cannabis com fins de pesquisa e produção de remédios no Brasil, tema que foi alvo de embate, em julho de 2019, envolvendo governo, Conselho Federal de Medicina (CFM) e Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Em nota, as duas instituições repudiaram a regulação do plantio, alegando que “o uso da cannabis (...) ainda não possui evidências científicas consistentes que demonstrem sua eficácia e segurança aos pacientes” e “coloca em risco esse grupo, além de causar forte impacto na sociedade em sua luta contra o narcotráfico e suas consequências”. A nota cita a Resolução CFM nº 2.113/2014, que proíbe aos médicos “a prescrição da cannabis in natura para uso medicinal, bem como de quaisquer outros derivados que não o canabidiol” – uma das 113 substâncias encontradas na planta.
Conforme declarações veiculadas na imprensa [ver agui], a Anvisa esclareceu que não precisa do aval do governo ou do Congresso para regulamentar o cultivo de cannabis sativa para fins medicinais e científicos. Após consulta pública sobre o tema, encerrada em agosto de 2019, com 554 contribuições, a agência agora depende da deliberação e decisão final da diretoria colegiada.
Para o professor, faltam evidências médico-cientificas rigorosas não para o uso, mas para a criminalização e a proibição da cannabis. Na proibição, procedimentos importantes de testes de eficácia e de segurança não são feitos, explica. “Os experimentos são prejudicados. Uma vez que é proibida a maconha, temos pouco acesso a ela em quantidade suficiente para estudo. Mas... por que é proibida? Não se sabe”.
João Menezes lembra que, no Brasil, o uso medicinal da substância é autorizado até os 18 anos de idade. “No entanto, a partir do uso da cannabis, essas crianças sobrevivem e passam dos 18 anos. E, então, não podem mais fazer uso? Não há sentido nisso”.
João Menezes aponta outro entrave resultante da proibição: a qualidade do produto a ser pesquisado, prejudicada pela presença de contaminantes. “É ínfimo o número de artigos que abordam contaminantes na maconha e nenhum trata da possibilidade de influência desses contaminantes no efeito final”, observa o pesquisador, que realizou um levantamento de artigos que tratam do tema. “Há países que encontraram pesticidas na maconha, um contaminante que poderia prejudicar o uso medicinal por uma criança. O Estado tem, portanto, obrigação de oferecer segurança nesse acesso”, pondera.
A Anvisa, segundo o professor, faz “um ótimo trabalho”, mas exagera em relação aos termos da regulamentação, capaz de concentrar o acesso à cannabis nas mãos de poucos: a proibição na produção favorece a importação que beneficia grupos estrangeiros, exemplifica. “E por que importar se podemos plantar localmente e balizar os riscos?”, indaga. Criminalizar o cultivo de maconha no país, destaca o médico, só vem a deixar o Brasil em posição de atraso.
“Em países como Uruguai, há dois tipos de cultivo, um industrial super rigoroso, e o autocultivo, mais flexível. Não há necessidade desse excesso de segurança como se isso fosse a produção de uma bomba atômica”, compara. “A domesticação da cannabis ocorreu há aproximadamente 10 mil anos e acompanha os seres humanos há muito tempo, muito antes da escrita. Seu uso, portanto, é tradicional. Civilizações inteiras fazem uso cultural da maconha”.
Com base em antecedentes históricos, o professor avalia como distante, ainda, a possibilidade da descriminalização da cannabis no Brasil. “Foi assim com a abolição da escravidão, que, no país, ocorreu 50 anos após último país abolir. Como médico, lamento. Fiz um juramento de não causar o mal, e sabemos que a proibição faz mal. Isso afeta a todos”.