Assegurar acesso a vacinas é defender a vida

Assegurar acesso a vacinas é defender a vida

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A defesa da vida vem se tornando uma palavra de ordem cada vez mais enfática na contraposição a políticas que vêm sendo implementadas pelo governo federal, políticas estas claramente marginalizando setores da população, ignorando e acentuando a exclusão social, aumentando o desemprego, sufocando nossas instituições históricas e desmontando políticas sociais construídas ao longo dos anos. Por outro lado, assegurar acesso a tecnologias não pode se resumir a simplesmente dispor dessas tecnologias, importadas ou produzidas no país. Torna-se necessário assegurar sua disponibilização no nosso SUS.

Quando falamos em vacinas para Covid-19, o tema se reveste de muito maior complexidade, pois não basta ter a vacina; a vacinação é operação complexa e que tem um histórico relevante no Brasil. Lembremos da erradicação da varíola no mundo, em que o Brasil e técnicos brasileiros tiveram papel fundamental. A luta contra a poliomielite iniciada na década de1980, com as campanhas que compuseram os dias nacionais de vacinação, a intensificação da vacinação contra o sarampo e a campanha de multivacinação são exemplos de políticas implementadas com a integração das diferentes esferas de governo e, muito além, com o envolvimento de múltiplos atores,com perspectiva clara e numa ação conjunta abrangente.

O sucesso da vacinação contra a Covid-19 envolve o fortalecimento da capacidade regulatória que colocou a Anvisa entre as principais agências reguladoras em nossa região e no mundo

Nossa Constituição de 1988 afirma a saúde como direito de todos e dever do Estado e é nesse sentido que devemos assegurar o fortalecimento de políticas inclusivas ede instituições e iniciativas já reconhecidas mundialmente e que têm conseguido, ao longo dos anos, tornar o Brasil reconhecido e respeitado no mundo inteiro. Podemos estar incorrendo no erro de sepultar esse reconhecimento em função de medidas erráticas anunciadas ou praticadas pelos atuais dirigentes.

O sucesso da vacinação contra a Covid-19 envolve o fortalecimento da capacidade regulatória que colocou a Anvisa entre as principais agências reguladoras em nossa região e no mundo. O rigor na capacidade regulatória tem de ser assegurado. Causa preocupação o fato de que, em nota recente, os servidores da Anvisa tenham comunicado que “não irão tolerar quaisquer pressões de cunho político ou ideológico no desempenho de seus trabalhos”, afirmando, ainda, que “independentemente de origem ou nacionalidade, os produtos serão avaliados dentro dos mais elevados padrões técnicos e científicos, com a finalidade de promover o acesso e proteger a saúde do povo brasileiro”. Causa preocupação uma nota com esse teor, porque o alegado na nota seria responsabilidade natural da Anvisa, de seus servidores e, em especial, de seus dirigentes.

A criação do Programa Nacional de Imunizações, em 1973, colocou o Brasil na vanguarda do mundo, reforçado pelo Programa Nacional de Auto-Suficiência em Imunobiológicos

O acesso a vacinas para Covid-19 envolve também assegurar a solidez de nossas instituições públicas de Ciência, Tecnologia e Inovação, com destaque para a Fundação Oswaldo Cruz, o Instituto Butantan e o Instituto de Tecnologia do Paraná, com antecedentes históricos de desenvolvimento tecnológico, e também, em especial, de cooperação e compartilhamento do conhecimento e com iniciativas conjuntas de sucesso. É de louvar que tenhamos no Brasil a competência de contar com instituições sólidas,signatárias de acordos de cooperação e transferência de tecnologias,no sentido de nos capacitar internamente e de gerar respostas positivas à autonomia tecnológica e a soberania.

Citamos essas três instituições públicas pelo fato de que elas se encontram integradas em iniciativas para internalizar a disponibilidade e a produção e vacinas para Covid-19 no Brasil, por intermédio de cooperação, respectivamente, com AstraZeneca/Oxford, SinoVac e Instituto Gamaleya. Essa perspectiva de produção é assegurada em acordos de cooperação amplamente discutidos e anunciados no Brasil, inclusive na Comissão Externa da Câmara dos Deputados, que acompanha as atividades relacionadas com a pandemia ocasionada pelo novo coronavírus.

A criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), em 1973, colocou o Brasil na vanguarda do mundo, reforçado pelo Programa Nacional de Auto-Suficiência em Imunobiológicos, desencadeado formalmente em 1986 – tendo como fator condicionantea crise estabelecida pelo fechamento da empresa Syntex por problemas detectados em seus produtos, mergulhando o Brasil em uma crise de desabastecimento de soros antipeçonhentos e acarretando a necessidade emergencial de investimentos na capacidade de produção e restrições a seu uso, limitado naquele momento ao setor público muito bem coordenado.

De poucas vacinas obrigatórias, em seus primórdios, destinadas à imunização de crianças, hoje o PNI se ocupa de pelo menos 45 vacinas destinadas a todas as faixas etárias, além de campanhas anuais, e representa um dos maiores programas de imunizações no mundo. É lógico que essa expertisesejao elemento que coordene os esforços em nível nacional para assegurar o acesso de nossas populações às vacinas comprovadamente eficazes e certificadas pela nossa agência reguladora Anvisa, independentemente de sua procedência.

Concluindo, queremos expressar nossa expectativa de que o Brasil, como país continental e de histórico relevante no contexto da saúde global, não venha a se apequenar, transformando-se num país pária, palavras do atual chanceler, afastando-se de parceiros tradicionais, rompendo consensos estabelecidos por décadas e se alinhando com valores ultraconservadores que desmontam pilares democráticos arduamente construídos e respeitados.

O Brasil merece respeito às suas conquistas históricas. Nossas populações merecem o respeito que a Constituição já estabeleceu. Hoje, mais do que nunca, despindo-se de qualquer ideologia ou nacionalismo, assegurar acesso a vacinas Covid é defender a vida.

 

* Pesquisador da ENSP/Fiocruz; membro do Painel de Alto Nível do Secretário-geral das Nações Unidas em acesso a medicamentos