A dengue está de volta – por Rivaldo Venâncio da Cunha e André Machado de Siqueira
No âmbito da série sobre dengue, com a publicação de conteúdos sobre as tecnologias de enfrentamento da doença (ver aqui e aqui), o blog do CEE-Fiocruz passa a abrir espaço também à análise de pesquisadores e formuladores de política pública para tratar do tema. Desse modo, diante do agravamento do cenário, buscamos conformar um quadro amplo e o mais completo possível dos caminhos para lidar com os desafios que a doença impõe. O artigo a seguir dá início a essa vertente da série sobre dengue.
Mais uma vez a dengue ganha grande destaque nos meios de comunicação brasileiros. No ano de 2023, foram notificados cerca de um milhão e seiscentos mil casos da doença no Brasil. Ao que tudo indica, 2024 alcançará números bem superiores, tendo atingido a marca de 1 milhão de notificações nos primeiros dois meses do ano.
A exemplo do que ocorreu com diversas outras doenças infecciosas, os conhecimentos acerca do agente causador da dengue e de seus mecanismos de transmissão passaram por diversas fases, de acordo com a hegemonia de cada concepção científica, em cada momento histórico. Dessa forma, a origem da dengue já foi creditada aos miasmas, às bactérias, aos protozoários e, finalmente, a agentes “ultramicroscópicos”, posteriormente denominados vírus.
Estudos realizados durante e imediatamente após a Segunda Grande Guerra comprovaram a origem viral da dengue, ao identificarem dois tipos do vírus, posteriormente nomeados de vírus Dengue tipo 1 e vírus Dengue tipo 2. Essas pesquisas foram conduzidas simultaneamente por dois grupos de pesquisa distintos, sendo um japonês e o outro norte americano. O grupo de pesquisa americano tentou, durante vários anos, obter a atenuação da virulência do vírus dengue, de tal forma que pudesse ser usada como vacina para proteger contra novas infecções. Não alcançando sucesso na obtenção de uma vacina contra a dengue, o líder do grupo de pesquisa decidiu estudar a prevenção para outra doença. Esse pesquisador era o Dr. Albert Sabin, o mesmo que ficou mundialmente conhecido por seus estudos exitosos para a obtenção de uma vacina para proteger contra a poliomielite.
Uma pessoa poderá ter até quatro episódios de dengue, cada um causado por um sorotipo diferente do vírus [...] Este é um ponto importante, uma vez que a ciência já conseguiu determinar que episódios secundários de dengue costumam cursar com maior risco de gravidade
Os vírus Dengue tipo 3 e tipo 4 foram identificados a partir de pesquisas realizadas nas Filipinas e na Tailândia, que tinham como objetivo principal esclarecer a origem de epidemias de uma doença caracterizada por febre e manifestações hemorrágicas.
É bom esclarecer que, uma vez infectado, o indivíduo desenvolve imunidade permanente para aquele sorotipo que o infectou naquele momento. Em outras palavras, uma pessoa poderá ter até quatro episódios de dengue, cada um causado por um sorotipo diferente do vírus, de forma que se pode dizer que a etiologia da dengue se dá por 4 vírus quase distintos. Este é um ponto importante, uma vez que a ciência já conseguiu determinar que episódios secundários de dengue costumam cursar com maior risco de gravidade, por meio de um fenômeno descrito como a amplificação dependente de anticorpos (ADE). Neste fenômeno, anticorpos desenvolvidos durante a infecção primária por um sorotipo, ao invés de proteger contra os demais sorotipos de dengue, atuariam facilitando a entrada do vírus nas células-alvo, o que amplificaria a replicação viral e, consequentemente, a resposta inflamatória. A dificuldade em promover resposta imune homogênea e equilibrada contra os quatro sorotipos explica a demora no surgimento de vacinas que possam ser utilizadas para prevenir a dengue.
No Brasil, há relatos de doença compatível com dengue desde o século XIX. No entanto, somente durante uma epidemia ocorrida em Boa Vista (RR), entre os anos 1981 e 1982, houve a comprovação laboratorial da presença do vírus dengue no país. Depois de quatro anos sem registro, o vírus voltou a ser identificado no início do ano de 1986, dessa vez na cidade de Nova Iguaçu, RJ, causando uma epidemia que se estendeu para outras localidades do Estado e, paulatinamente, se disseminou por todo o país. Desde então, praticamente todos os anos registramos epidemias de dengue no Brasil, mudando apenas as localidades nas quais a doença ocorre mais intensamente. É importante destacar que por grande parte destas quatro décadas a região Sul do país foi praticamente poupada da transmissão de dengue, algo que deixou de ser realidade nos últimos anos, fato que pode ser atribuído a uma maior receptividade e condições climáticas favoráveis ao estabelecimento do Aedes aegypti nesta região, à presença de uma população praticamente toda suscetível aos quatro sorotipos do vírus e ao importante fluxo populacional. A ausência de experiência em manejar a doença e a lentidão na organização da rede assistencial para um importante aumento na demanda certamente contribuíram para a elevada mortalidade por dengue observada em 2023, quando foi registrado o número recorde de óbitos por esta doença no país.
Para esta epidemia de 2024 temos duas novidades: a primeira é a disponibilidade de uma vacina para prevenir a infecção pelo vírus engue e, sobretudo, para proteger contra as formas graves da doença, reduzindo o risco de hospitalizações e mortes. A segunda novidade é a forma como o Ministério da Saúde está encarando a situação
No que concerne ao enfrentamento à dengue pelas autoridades sanitárias e sociedade, pode-se pontuar dois momentos. O primeiro, o período interepidêmico, no qual é importante estabelecer ações de controle de criadouros do Aedes aegypti por meio do engajamento da população, mas principalmente por meio de ações urbanizadoras de coleta de lixo e redução de potenciais locais de desenvolvimento do vetor, e pela manutenção de vigilância para detecção oportuna da ocorrência de casos e identificação do risco de aumento de transmissão. Neste primeiro momento, é importante a geração de planos de contingência e preparação para lidar com possíveis surtos e epidemias da doença. O segundo momento é o período epidêmico, no qual a ação mais importante e crítica deixa de ser o controle dos criadouros do mosquito e passa a ser a organização da rede assistencial para a identificação rápida de casos suspeitos, a sua classificação em grupos de acordo com a gravidade e o pronto estabelecimento das medidas terapêuticas apropriadas. A prontidão com que a rede assistencial é estruturada e promove o adequado manejo dos casos suspeitos é o que define se uma epidemia, uma vez instalada, resultará em baixo ou alto número de óbitos. Nas palavras do dr. Eric Martinez, médico e gestor cubano com destacada experiência em dengue: “Tão importante quanto prevenir a transmissão da dengue é a preparação dos sistemas de saúde para cuidar adequadamente dos doentes e evitar sua morte. Devemos aspirar a não ter epidemias, mas se elas ocorrerem, devemos garantir que não haja mortes. Um bom administrador de saúde é capaz de salvar mais vidas durante uma epidemia de dengue do que médicos e intensivistas”.
Para esta epidemia de 2024 temos duas novidades: a primeira é a disponibilidade de uma vacina para prevenir a infecção pelo vírus engue e, sobretudo, para proteger contra as formas graves da doença, reduzindo o risco de hospitalizações e mortes. A segunda novidade é a forma como o Ministério da Saúde está encarando a situação.
Ainda bem que o SUS tem a Conitec! O compromisso dessa Comissão com a qualidade, a segurança, o custo-efetividade da tecnologia que está sendo incorporada nos dá a necessária tranquilidade e confiança em situações como esta que estamos vivenciando com a incorporação da vacina contra a dengue.
Como acontece com todas as novas vacinas, exceto em momentos de emergência sanitária como na pandemia da Covid-19, a sua incorporação pelo Sistema Único de Saúde (SUS) deve, necessariamente, cumprir um rigoroso e, por vezes, demorado ritual, coordenado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). Ainda bem que o SUS tem a Conitec! O compromisso dessa Comissão com a qualidade, a segurança, o custo-efetividade da tecnologia que está sendo incorporada nos dá a necessária tranquilidade e confiança em situações como esta que estamos vivenciando com a incorporação da vacina contra a dengue.
Devemos comemorar a incorporação dessa vacina no SUS, ao mesmo tempo em que devemos lamentar que a sua produção ainda seja tão restrita. A capacidade de produção do laboratório Takeda, fabricante da vacina, é insuficiente para atender às necessidades do país, levando o seu direcionamento para as faixas etárias mais gravemente afetadas, razão pela qual não devemos alimentar expectativas em relação ao seu impacto no curso das atuais epidemias regionais. No entanto, cabe registrar o acerto do Ministério da Saúde ao decidir incorporá-la ao SUS. Mesmo que houvesse a disponibilidade de apenas algumas dezenas de doses, ainda assim valeria sua incorporação. Este pioneirismo posiciona o país e o SUS com o destaque de produzir a primeira experiência em larga escala de aplicação desta vacina na população.
A segunda novidade diz respeito à postura do Ministério da Saúde diante das atuais epidemias regionais de dengue, com destaque para a forma hábil, democrática e transparente com que a situação vem sendo conduzida. O conjunto de técnicos do Ministério da Saúde, tendo à sua frente a ministra Nísia Trindade Lima, tem dado sucessivas demonstrações de humildade, serenidade, extrema dedicação ao trabalho e, ao mesmo tempo, firmeza.
Neste momento, a declaração de emergência por diversos estados vem acompanhada de facilidades na aquisição de insumos e contratações para o enfrentamento da epidemia e é preferível à declaração de epidemia de saúde pública de interesse nacional (Espin), pois deixa a tomada de decisão no nível local, mais próximo do território onde estão acontecendo os casos e próximos das realidades e responsabilidades dos gestores
Para quem acompanhou o processo de construção do SUS, é motivo de orgulho testemunhar as inúmeras iniciativas da ministra da Saúde para auscultar os diversos segmentos direta e indiretamente envolvidos na gestão da saúde, como governadoras e governadores, prefeitas e prefeitos, Conselho Nacional de Saúde, Conselho Nacional de Secretarias de Estado de Saúde, Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, bem como Conselhos e sociedades das diversas categorias profissionais e de especialistas. Neste momento, a declaração de emergência por diversos estados vem acompanhada de facilidades na aquisição de insumos e contratações para o enfrentamento da epidemia e é preferível à declaração de epidemia de saúde pública de interesse nacional (Espin), pois deixa a tomada de decisão no nível local, mais próximo do território onde estão acontecendo os casos e próximos das realidades e responsabilidades dos gestores.
Este envolvimento é essencial, uma vez que o atendimento a casos de dengue de forma adequada – tanto em qualidade quanto em dimensionamento da força de trabalho necessária pelo número de casos – é fator primordial para o enfrentamento de epidemias e esta organização para ser efetiva deve se dar no nível local, municipal, com o apoio dos níveis estadual e federal.
Os próximos meses serão decisivos, sobretudo em relação ao elevado número de mortes associadas à dengue. É sempre bom lembrar que, salvo raras exceções, as mortes por dengue são mortes evitáveis, assunto que seria interessante para outra conversa. Até lá, desejamos axé, muito axé para todos nós.
* Rivaldo Venâncio da Cunha: médico infectologista, pesquisador da Fiocruz; André Machado de Siqueira: médico infectologista, pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz)