A comunicação da esquerda e da direita, em tempos de guerra semiótica
A estetização da política, as atuações performáticas e a transformação de símbolos em ícones mitificados são algumas estratégias que o jornalista, professor e pesquisador Wilson Ferreira observa no cenário da comunicação nos dias atuais. Ele participou da oficina Guerra semiótica, políticas sociais e saúde, realizada em 22/10/2018 pelo CEE-Fiocruz. Sua exposição foi comentada por Umberto Trigueiros, assessor do gabinete da presidência da Fiocruz, e Carlos Fidelis Ponte, Pesquisador do Observatório História e Saúde da fundação e diretor da Asfoc-Sindicato. A partir de um olhar de estudioso da comunicação, e não de forma partidária e ideológica, como fez questão de frisar, Wilson, que é editor do blog Cinegnose, trouxe exemplos históricos do uso de estratégias comunicacionais e analisou a forma como os campos da esquerda e da direita lidam com elas, hoje, nos aspectos éticos e midiáticos. De acordo com o pesquisador, o campo da direita já vem atuando ativamente no que se chama tecnologia de convergência, em especial, nas redes sociais, “enquanto a esquerda mal conseguiu entender as propagandas clássicas de mídia de massa do século 20”.
Lembrando que o conceito de guerra semiótica é inspirado no texto do pensador italiano Umberto Eco, Guerrilhas semióticas, de 1967, Wilson iniciou relatando experiência que teve com alunos de ensino médio durante a ocupação das escolas públicas, em 2016, na qual constatou que esses jovens estão em convergência tecnológica, não assistem mais à televisão, estão nas redes sociais, internet, blogs e diversas plataformas de vídeo. “Não há mais aquela discussão sobre as grandes mídias e espectadores passivos. Todo mundo é emissor e receptor”, analisou, destacando que as ondas criadas pelas tecnologias convergentes são tão grandes que nem institutos de pesquisa conseguem detectar. “Resultados dados como certos nas eleições brasileiras mudaram em questão de horas. Se não houve fraude... Os institutos de pesquisa ainda estão no século 20, na era dos movimentos de mídia de massa, que eram mais previsíveis e lógicos. Hoje estamos mais próximos do fractal e da teoria do caos”.
Wilson destacou uma das estratégias da guerra semiótica, chamada de dissonância cognitiva, que se refere a provocar sensações a partir de crenças contraditórias, empregada como estratégia na disputa eleitoral. “É uma tática maquiavélica, mas é muito eficaz”.
De acordo com Wilson, a comunicação deve ser analisada a partir do entendimento de que ela não existe a posteriori. “O estudo da comunicação depois que ela acontece pertence aos campos da semiótica, da linguística, da sociologia. A comunicação é de natureza fenomenológica, fugidia, efêmera, é o acontecimento, o instante, o aqui e agora. E, assim, é performática”, analisou, acrescentando que o campo da esquerda não compreendeu isso. “A esquerda fica no propositivo, no conteudista, na discussão de propostas e plataformas. Enquanto isso, a direita joga com o impacto, com a performance, com a criação de atmosferas, com timing perfeito em termos midiáticos”, disse, destacando, no entanto, que há aspectos éticos aí envolvidos.
É nesse caminho que podem ser entendidos os efeitos das fake news, conforme explica o pesquisador. “A Justiça Eleitoral manda retirar vídeos falsos da rede, mas o mal já foi feito, aquilo já aconteceu. Já não tem o certo e o errado, a verdade e a mentira. Existe o fato, o acontecimento. É a comunicação pensada de forma niilista, amoral”.
A comunicação é de natureza fenomenológica, fugidia, efêmera, é o acontecimento, o instante, o aqui e agora. E, assim, é performática
Para Wilson, ainda, historicamente, a direita sempre esteve na vanguarda no que diz respeito aos aspectos comunicacionais, e fi como Hitler e Mussolini emularam personagens cinematográficos, no que o pesquisador chama de “canastrice na política” – outra estratégia. “Se você olhar o nazi-facismo, tanto Hitler quanto Mussolini eram figuras folclóricas, humorísticas engraçadas, para não dizer patéticas, que ninguém levava a sério. Hitler era um cabo ressentido, enquanto Mussolini era amante do cinema e chegou até a fazer pontas em filmes, como Roma cidade eterna. Eles emularam canastrões dos filmes mudos. Vimos depois a performance deles em Chaplin fazendo O grande ditador”, analisou. “Jânio Quadros emulava, na minha opinião, Jacques Tati, nos trejeitos no tipo de comportamento”. Essa “normalização”, de acordo com o jornalista, é um fenômeno do fascismo. “Todo personagem fascista começa como uma pessoa engraçada, humorística, que ninguém leva a sério. Depois vai conquistando corações e mentes e chega lá”.
Wilson destacou que o fascismo é um fenômeno da estética, sem propostas claras e voltado mais a performances, criação de ambientes e climas, com vistas ao aqui e agora. No nazi-fascismo clássico, lembrou, predominava o modelo hipodérmico de comunicação, que toma a mídia como uma seringa que injeta conteúdos na sociedade como um todo, massificada. “Isso funcionava, explicou, quando se tinha uma massa isolada, solitária, e não interconectada como hoje. “Contar com o analfabestimo político é uma visão clássica da teoria hipodérmica que não existe mais. O brasileiro não é passivo. Não adianta esperar, como ainda faz a esquerda, que uma elite vai iluminar as massas, consideradas um Homer Simpson”, disse, em referência ao personagem da série de TV.
Wilson resgatou também os estudos do pensador alemão Theodor Adorno (1903-1969), da Escola de Frankfurt, no qual este estabeleceu critérios de detecção de características da personalidade autoritária, que denominou de Escala F (em referência ao fascismo), que se transfigura nos dias de hoje. “Adorno, neste momento, torna-se atual, tem muita relação com a realidade brasileira, hoje”.
O pesquisador citou, ainda, os estudos empíricos realizados nos Estados Unidos nos anos 1930, 1940, em especial pelo pesquisador americano Paul Lazarsfeld (1901-1976), para explicar o fenômeno. “Lazarsfeld descobre que a massa não é amorfa, criam-se relações sociais em seu interior. Entre a mídia e a sociedade há mediações, e o que está na mídia deve ser sancionado por formadores de opinião. Em outras palavras, o que a mídia fala deve ser sancionado por líderes de opinião.
Acesse aqui a apresentação de Wilson Ferreira
À estratégia hipodérmica opõem-se hoje as guerras híbridas, que incluem entre suas ações a guerra semiótica. Atacam-se os aspectos simbólicos, para explorar pontos fracos dos adversários. Esses ataques se dão, como no caso do Brasil, a partir das jornadas de junho de 2013, em quatro etapas, explicou Wilson. A primeira é o caos, produzindo-se manifestações populares onde há mídia. “As pessoas acham aquilo verossímil porque já viram no cinema. É o hiper-real”. A segunda etapa refere-se ao que ele chama de “etnografia do conservadorismo”, em que se valorizam as iniciativas individuais, o empreendorismo (destacado em séries televisivas como Master Chef, cuja mensagem é “tem que ralar e estar focado para vencer”) e o entendimento de que o sucesso individual levará ao sucesso da coletividade. A terceira etapa é o agendamento político por meio da teledramaturgia. O pesquisador cita séries televisivas, cujos personagens “replicam na hiper-realidade o que ocorre na realidade”. Por fim, a quarta etapa refere-se à radicalização e à polarização, tal como se observa, hoje, na sociedade brasileira. “Não há debate, não se discute política econômica, política pública. Só se trata do contra ou a favor. Contra ou a favor do aborto, contra ou a favor do feminismo etc.”.
A ficção reverbera a realidade, embrenha-se em situações reais. E vemos personagens reais portando-se como personagens ficcionais saturados, exagerados, criando uma situação de hiper-realidade”, explicou Wilson, citando o pensador francês Jean Baudrillard, que aborda a hiper-realidade como força política
A partir da exibição de um trecho do filme Mera coincidência (Barry Levinson, 1998), inspirado no caso do presidente americano Bill Clinton e a estagiária Monica Lewinsky, o pesquisador discutiu a engenharia da opinião pública, em que se constrói artificialmente uma realidade para desviar a atenção da sociedade. Conforme relata Wilson, o filme trata de um presidente americano que é acusado de assédio sexual a uma jovem em visita à Casa Branca, e tenta desviar a opinião pública desse escândalo inventando uma guerra. Para isso, chama um produtor cinematográfico de Hollywood que cria a guerra, uma ameaça aos Estados Unidos por terroristas albaneses, que entram pelo Canadá com uma mala-bomba, tudo produzido em estúdio. A escolha pela Albânia se dá “porque ninguém sabe onde fica”. Dois outros filmes foram citados por Wilson para ilustrar essas estratégias – Obrigado por fumar e Terra prometida.
“A ficção, o cinema reverberam a realidade. A ficção se embrenha em situações reais. E vemos personagens reais portando-se como personagens ficcionais saturados, exagerados, criando uma situação de hiper-realidade”, explicou Wilson, citando o pensador francês Jean Baudrillard, que aborda a hiper-realidade como força política.
O pesquisador tratou, ainda, de um outro fenômeno da guerra semiótica, o da iconificação, uma das primeiras estratégias dos grupos nazifascistas. Trata-se de pegar um símbolo e transformar em um ícone, esvaziando-o. Ele deu como exemplos a suástica, que os nazistas criaram a partir de um símbolo budista, “com design clean, minimalista, e cores primárias fortes”; a imagem do líder cubano Che Guevara, “que estampa até capa de pneus de SUVs”; e a camisa verde e amarela da Seleção Brasileira. “Uma falha do campo progressista foi ter deixado de lado as cores nacionais. A direita iconificou e viralizou”.
De acordo com Wilson, a esquerda atua a partir de um ponto de vista iluminista, cartesiano e racional da comunicação e impõe-se um desafio. “Deve descer e disputar nos mesmos campos simbólicos da direita, a partir de estratégias como a iconificação?”, indaga, destacando os aspectos éticos aí envolvidos. Ele considera como caminho a proposta de uma comunicação direcionada, que atinja os líderes de opinião. “Não pensar mais na massa como um todo, mas em públicos determinados; atuar de forma multifacetada, não apresentar uma só cara, voltada apenas para os militantes e convertidos”.
Leia mais sobre guerras híbridas aqui.
Aguarde o vídeo com a íntegra da exposição de Wilson Ferreira.