A Odisseia do sanitarista
A vontade de Odisseu de retornar a Ítaca resultou mais poderosa do que os encantos da bruxa Circe.
Depois de vários invernos sob seu feitiço, ele conseguiu retomar sua longa jornada.
Mas ele sabia que no caminho entre a ilha de Circe e seu reino teria que passar pelo sedutor canto das sereias. Outro encantamento do qual nenhum mortal conseguiu escapar com vida.
Como Ulisses modernos, nossos sanitaristas também devem liderar a saúde pública buscando o bem-estar, como destino, mas evitando múltiplos desafios. Entre eles, a transição demográfica, pela qual a taxa de natalidade caiu, a longevidade aumentou e a população concentrou-se nas faixas etárias mais velhas; a transição epidemiológica, pela qual as doenças crônico-degenerativas estão se tornando mais prevalentes e que aumenta as necessidades de cuidado e força a reconsideração dos modelos assistenciais; a inovação tecnológica, que por vezes melhora a eficácia das respostas médicas e outras vezes apenas cria ilusões, mas que sempre inelutavelmente encarece os tratamentos; também as ilusões da alquimia organizacional, sempre a busca da pedra filosofal que aumente o desempenho e a governança de nossos serviços de saúde.
Mas, nessa Odisseia, talvez como na história de Homero, os maiores dilemas da saúde pública hoje se traduzem no risco de sucumbir a dois perigosos encantos. De um lado, um reducionismo tecnocrático que chamamos de tentação neoliberal. Do outro, um reducionismo demagógico que chamamos de tentação populista. Versões extremas e opostas de como as decisões de saúde devem ser tomadas.
A tentação neoliberal é muito mais poderosa do que muitos de seus oponentes percebem. Porque não se restringe à comercialização de serviços. Até a última década do século passado, suas premissas eram sintetizadas como “diante de todas as mazelas do Estado, deleguemos ao mercado”. Mas boa parte das tentativas de privatização fracassou (pelo menos abaixo do Trópico de Capricórnio). Vimos grupos de investidores — que vinham anunciando que iriam manter o seguro social de saúde e os hospitais públicos — perderem dinheiro e fugirem aterrorizados dos nossos países.
No século XXI, a essência da proposta neoliberal em saúde foca-se em restringir o espaço das decisões sanitárias ao campo técnico. Não é mais desmercantilizar ao mínimo (eufemismo dos anos 90 para não dizer “mercantilizar ao máximo”), mas sim despolitizar as decisões. Transformar o sanitarismo em uma engenharia sanitária em que o cálculo e a eficiência submetem vontades, interesses e preferências.
O ponto fraco dessa proposta é sua incapacidade para construir governança. Reduz a saúde a uma função de produção sem considerar que também é o resultado de um jogo de vontades. Calcula, mas não convence, gerando desconforto entre trabalhadores e usuários dos serviços. O resultado é que suas políticas de saúde sempre aparecem como estranhas. Não representam as pessoas, as suas preocupações e interesses. No máximo contemplam as necessidades da população (não de uma população concreta mas da população em abstrato), que são interpretadas pelos técnicos iniciados (PHDeuses do olimpo sanitário).
Do outro lado, a tentação populista prioriza os interesses dos trabalhadores e, se não de todos, ao menos de alguns grupos de usuários dos serviços de saúde, por sobre a racionalidade técnica. As decisões de saúde são moldadas pelo que as pessoas valorizam. Geram adesão e atraem defensores. A sua fraqueza é que é muito difícil para elas serem sustentáveis. Concedem proteções e benefícios sem garantir os recursos para sua realização e manutenção. É uma fuga populista permitir que serviços médicos sejam inaugurados mesmo onde já há oferta suficiente. Cobrir procedimentos e medicamentos sobre cuja contribuição médica ainda há dúvidas. Ou mesmo conceder aumentos salariais quando não há recursos para mantê-los no futuro.
O dilema da saúde transita entre uma utopia positivista que ambiciona gerir sistemas e serviços de saúde como se fossem máquinas, e políticas de saúde como se fossem softwares; ou, no outro extremo, a fugida demagógica que procrastina uma racionalização necessária. Essa última sobrepõe respostas, benefícios e serviços, hipotecando o futuro da nossa Saúde. É verdade que não é possível cobrir tudo sem aumentar os recursos destinados à saúde. Mas também não é concentrar as decisões sobre como produzir saúde em um grupo de tecnocratas isolados. Lembremos que os serviços de saúde requerem um uso intensivo do talento humano. Portanto, a saúde pública precisa de mais líderes do que gestores tecnocráticos.
Assim como Ulisses uniu vontade e sabedoria para superar as tentações e desafios que surgiram na sua viagem, os nossos sanitaristas precisarão aliar uma grande capacidade de diálogo a sólidos argumentos técnicos.
*Federico Tobar, consultor regional do UNFPA em Sistemas de Saúde e Garantia de Suprimentos de Saúde Reprodutiva. Asesor Regional en Sistemas de Salud y Medicamentos del Fondo de Población de las Naciones Unidas.
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